SOBRE A DEPRESSÃO  

  

Os transtornos de humor são os problemas de saúde mental com as maiores taxas de incidência no Brasil. A prevalência é de 18,5% segundo os critérios do CID-10 (Pacheco & Vieira, 2016). Hoje a população brasileira é de 210 milhões de habitantes, segundo dados atualizados do IBGE divulgados em 2019 (Projeção da população do Brasil e das unidades da federação, n.d.). Isso implica afirmar que mais de 38 milhões de pessoas preenchem critérios diagnósticos para os transtornos de humor, dentre os quais os transtornos depressivos.

 

Somado a isso é apresentado outro dado alarmante: de 2005 e 2015 a taxa mundial de suicídios aumentou aproximadamente 22%, com um valor estimado de 10,7 suicídios/100 mil habitantes (Dallalana et al., 2019). Os episódios depressivos associados a depressão unipolar e bipolar são responsáveis pela metade das mortes por suicídio (Dallalana et al., 2019). Estratos de depressão de moderada a severa, sobretudo, requerem cuidados especializados dadas a gravidade e a incapacitação, com esforços interdisciplinares de psicoterapeutas e psiquiatras clínicos. A depressão é hoje o transtorno mental mais prevalente nas clínicas particulares e no atendimento público.  

 

Em meio a esse cenário histórico que sempre capturou a minha preocupação, conheci a ativação comportamental (BA, de Behavioral Activation), uma modalidade contextual e funcionalmente orientada de psicoterapia para a depressão. Meu primeiro contato ocorreu em 2005. Tive oportunidade então de aplicar e escrever sobre esse tratamento, tendo produzido dois artigos que, para este livro, configuraram-se como seminais.

  

OS DOIS ARTIGOS SEMINAIS   

 

O primeiro foi sobre a história tão vibrante dessa terapia, publicado no periódico Archives of Clinical Psychiatry (Abreu, 2006), do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo. A história da BA remonta à primeira geração de terapias comportamentais e estende-se pela presente terceira geração, sob interesse renovado da comunidade científica. Falar sobre a história da BA é invariavelmente falar da trajetória da terapia comportamental como um todo.

 

A BA é a engenhosa vovó das terapias comportamentais contextuais e goza de enorme prestígio por ser designada como uma das primeiras opções de tratamento psicossocial na depressão segundo instituições renomadas, como a Divisão 12 da American Psychological Association (Depression Treatment: Behavioral activation for depression, n.d.), o National Institute for Health and Clinical Excellence (NICE, 2009), o Canadian Network for Mood and Anxiety Treatments (Parikh et al., 2016), bem como a própria Organização Mundial da Saúde (Depression, n.d.)

 

Em um outro artigo publicado por mim à época no International Journal of Behavioral and Consultation Therapy (Abreu & Santos, 2008), tentei formular algumas análises de contingências envolvidas na caracterização de alguns subtipos de depressões, classificadas desde uma perspectiva comportamental, como as determinadas pelas punições, pela incontrolabilidade com eventos aversivos, e também pela extinção operante.

 

A racional que estava por trás de toda a minha argumentação consistiu em evidenciar como as contingências de controle aversivo poderiam diminuir a taxa de respostas contingentes ao reforçamento positivo (RCPR), processo comportamental conhecido por levar à depressão.

 

Isso porque, mesmo do alto das publicações até aquele ano, ainda parecia existir entre os psicoterapeutas a ideia de que fazer BA simplesmente implicava conduzir um enriquecimento da agenda de atividades junto ao depressivo. Isso, definitivamente, não é BA. Ao menos seria muito difícil justificar os desfechos positivos de casos nos ensaios clínicos randomizados simplesmente a partir de uma proposta de intervenção baseada no aumento de atividades simples.

 

Para minha surpresa, esse artigo continua sendo bastante referenciado pelos prin-cipais grupos de pesquisa no mundo, tendo já sido citado por autores como John Carvalho (Carvalho, 2011; Carvalho, & Hopko, 2011; Carva-lho et al., 2011), Carl Lejuez (e.g., Carvalho et al., 2011), Derek Hopko (p. ex., Carvalho, & Hopko, 2011; Carvalho et al., 2011), Sona Dimidjan (p. ex., Dimidjian, Barrera Jr, Martell, Muñoz, & Lewinsohn, 2011)., Christopher Martell (p. ex., Dimidjian et al., 2011) e pelo próprio gênio criador da BA, Peter Lewinsohn (p. ex., Dimidjian et al., 2011). Esse artigo contém quase toda a fundamentação que deu origem a este livro. 

 

 

O ENSINO DA TERAPIA COMPORTAMENTAL NO IACC 

 

O nosso interesse pela BA coincidiu com a criação do Instituto de Análise do Comportamento de Curitiba (IACC) em 2006. Demos naquela época o primeiro curso de Terapias Comportamentais Contextuais, quando se juntou a mim a Dra Juliana Abreu. Esse curso foi o début do instituto, e de certa forma, denunciou desde muito cedo o nosso insistente interesse, e dessa instituição, pela aplicação da BA e de demais terapias comportamentais contextuais. 

  

De certa forma o público recebeu com certo entusiasmo a apresentação da BA. Naquele ano havia sido publicado um ensaio clínico randomizado controlado por placebo, mostrando efetividade e superioridade da BA no tratamento da depressão de moderada a severa, comparativamente à terapia cognitiva de A. Beck (Dimidjian et al., 2006). Até então havia dados somente de efetividade dos antidepressivos no tratamento de pacientes graves. Lembro que a divulgação desses dados em nossos cursos causou grande interesse entre os terapeutas comportamentais.

 

  

Seguimos com o trabalho, e em 2008 abrimos o primeiro curso de Formação de Terapia Comportamental de ênfase em terapias de terceira geração, com relevante foco na BA, na terapia de aceitação e compromisso (ACT) e na psicoterapia analítica funcional (FAP). Um pouco mais tarde adicionamos a terapia comportamental dialética (DBT) a esse arsenal de terapias, até então também desconhecida dos terapeutas brasileiros. 

 

Era para nós um momento histórico vibrante, pois observávamos na nossa clínica e de nossos alunos resultados positivos na aplicação, em especial da BA. Casos em que a desesperança do cliente e o seu currículo de tentativas de suicídio eram desestimuladores, apontando prognóstico pobre, surpreendiam com desfechos positivos, às expensas de qualquer avaliação mais pessimista da equipe.

 

De lá para cá fomos adaptando, criando, testando e avançando na análise de contingências descrita em nosso tratamento. A clínica-escola do IACC foi ambiente profícuo para a prática e aprimoramento da BA, sempre sob nosso escrutínio técnico.  

 

A BA adaptada que aplicávamos, de certa forma, sempre foi integrada com outras terapias de terceira geração, como a FAP e a ACT. Isso porque, embora empregássemos as diretrizes da BA standard como intervenção base, adaptávamos sempre o emprego de concepções, avaliações e intervenções de outros sistemas de psicoterapia. Em depressão, via de regra, é grande a comorbidade com outros transtornos e problemas de comportamento.

 

Nossos clientes não tinham somente comportamentos depressivos, mas também déficits e/ou excessos marcantes de habilidades de inter-relacionamento. Do mesmo modo, traziam também elevada frequência de esquiva experiencial. E isso sempre foi a regra, quase nunca um estado de exceção.

  

Empregávamos de forma integrada intervenções ACT-orientadas e FAP-orientadas ao longo do processo técnico-clínico, sempre quando a demanda do cliente justificava. Contribuições da DBT com a sua tecnologia no manejo das crises suicidas foram também adicionadas, embora, ao nosso ver, tenhamos nos esforçado para um avanço na concepção baseada em análise de contingências, em sintonia com o objetivo do aumento das RCPR. 

  

A FORMULAÇÃO DA ATIVAÇÃO COMPORTAMENTAL BA-IACC 

 

Apresentamos um capítulo com a primeira versão da BA-IACC (Abreu & Abreu, 2015) no livro Terapias comportamentais de terceira geração: Guia para profissionais. Essa publicação foi uma versão preliminar do nosso tratamento, chamado por nós ainda de “Protocolo IACC”, por fazer referência ao instituto de Curitiba. 

  

Mas o protocolo merecia ainda expansão. A questão da insônia, por exemplo, sempre nos foi cara. Nossos clientes apresentavam, como regra, problemas graves de sono que com frequência interferiam com a melhora, ao passo que, também, quando residuais, serviam como gatilho para um novo episódio depressivo. Sensível a isso tudo, aprofundamos e acrescentamos um componente de tratamento da insônia ao protocolo original.

 

A versão revisada foi então publicada na Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva em uma edição especial sobre terapias comportamentais contextuais (Abreu & Abreu, 2017).  

 

No I Encontro Internacional de Terapias Comportamentais Contextuais e Psiquiatria realizado na cidade de Curitiba, falamos pela primeira vez publicamente sobre a BA-IACC aplicada à depressão em comorbidade com a insônia. Naquele ano também tentamos nos organizar para dar um treinamento intensivo em BA de 4 dias, que teve boa aceitação nacional, tendo rodado em muitas cidades brasileiras, como as capitais São Paulo e Curitiba.

 

O treinamento demandou também duas edições internacionais a convite do Sensorium, afiliado ao Albert Ellis Institute de Nova York: uma na cidade de Hernandarias e outra em Ciudad del Este, ambas no Paraguai.  

 

Tínhamos feedbacks valiosos de profissionais que, ao mesmo tempo em que discutiam a nossa contribuição, pediam que escrevêssemos versões descrevendo também nossos casos clínicos. E assim fizemos. O atual livro aqui apresentado fez justiça ao aprendizado passado por tantos clientes que nos confiaram suas melhoras e suas poucas esperanças. Sim, muita coisa havia ficado de fora nas versões breves publicadas nos anos de 2015 e 2017.  

 

Faltava trazer, para além da fundamentação técnica, a história dessas relações terapêuticas que findaram em progresso clínico. Queríamos que outros terapeutas comportamentais pudessem se beneficiar da nossa experiência e de nossos alunos com a aplicação da BA.  

 

Os doutores Tito Neto e Cristiane Gebara tiveram participação decisiva por dar suporte ao projeto e nos motivar junto à Editora Manole. Assim nasceu o manual BA-IACC para tratamento da depressão.

 

O manual traz componentes valiosos e inegociáveis de outros manuais, mas apresenta robusta contribuição para a análise de contingências aversivas, integração com outras terapias comportamentais contextuais, caracterização e intervenção em crises suicidas, insônia, consultoria de equipe, além de trazer um novo e atualizado diálogo com a psicopatologia médica e a filosofia behaviorista. 

 

INTERNACIONALIZAÇÃO 

 

Em 2021 é lançada a edição  internacional em espanhol.  

 

Esperamos, pois, que esta proposta de terapia possa ser valiosa para os terapeutas, e esperança para os inúmeros pacientes.

 

 

Paulo Abreu

Juliana Abreu

Curitiba/Brasil

 

 

REFERÊNCIAS 

 

Abreu, P. R. (2006). Terapia analítico-comportamental da depressão: Uma antiga ou uma nova ciência aplicada? Archives of Clinical Psychiatry, 33(6), 322-328. https://dx.doi.org/10.1590/S0101-60832006000600005 

Abreu, P. R. & Abreu. J. H. S. S. (2015). Ativação comportamental. In: J. P. Gouveia, L. P. Santos, & M. S. Oliveira (Eds). Terapias comportamentais de terceira geração: Guia para profissionais (pp. 406-439). Novo Hamburgo: Editora Sinopsys. 

Abreu, P. R., & Santos, C. (2008). Behavioral models of depression: A critique of the emphasis on positive reinforcement. International Journal of Behavioral and Consul-tation Therapy, 4, 130-145. DOI: 10.1037/h0100838. 

Abreu, P., & Abreu, J. (2017). Ativação comportamental: Apresentando um protocolo integrador no tratamento da depressão. Revista Brasileira de Terapia Compor-tamental e Cognitiva, 19(3), 238-259. https://doi.org/10.31505/rbtcc.v19i3.1065 

Carvalho, J. P. (2011). Avoidance and depression: Evidence for reinforcement as a mediating factor. PhD diss., University of Tennessee. 

Carvalho, J. P., & Hopko, D. R. (2011). Behavioral theory of depression: Reinforceent as a mediating variable between avoidance and depression. Journal of Beha-vior Therapy and Experimental Psychiatry, 42(2), 154-162. 

Carvalho, J. P., Gawrysiak, M. J., Hellmuth, J. C., McNulty, J. K., Magidson, J. F., Leju-ez, C. W., & Hopko, D. R. (2011). The Reward Probability Index: Design and validation of a scale measuring access to environmental reward. Behavior Therapy, 42(2), 249-262. 

Dallalana, C., Caribé, A. C., & Miranda-Scippa, A. (2016). Suicídio. In: E. C. Humes, M. E. B. Vieira, R. F. Júnior, M. Ma. C. Hubner, & R. D. Olmos (Eds.). Psiquiatria interdisciplinar (pp., 123-132). Barueri-SP: Manole. 

Depression (n.d.). In World Heath Organization website. Retrieved November 21, 2019, from https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/depression

Depression Treatment: Behavioral activation for depression (n.d.). In Division 12 of the American Psychological Association website. Retrieved October 2, 2017, from http://www.div12.org/psychological-treatments/disorders/depression/behavioral-activation-for-depression/ 

Dimidjian, S., Barrera Jr, M., Martell, C., Muñoz, R. F., & Lewinsohn, P. M. (2011). The origins and current status of behavioral activation treatments for depression. Annual Review of Clinical Psychology, 7, 1-38. 

Dimidjian, S., Hollon, S. D., Dobson, K. S., Schmaling, K. B., Kohlenberg, R. J., Addis, M. E., et al. (2006). Randomized trial of behavioral activation, cognitive therapy, and antidepressant medication in the acute treatment of adults with major depression. Journal of Consulting and Clinical Psychology, 74, 658-670. DOI: 10.1037/0022-006X.74.4.658.

National Institute for Health and Clinical Excellence (2009). Depression: The treatment and management of depression in adults. London, UK: National Institute for Clinical Excellence.

Pacheco, J. L., & Vieira, M. E. B. (2016). Função, limites e dificuldades para o psi-quiatra no trabalho junto a paciente com transtornos mentais em tratamento pelo médico não psiquiatra. In: E. C. Humes, M. E. B. Vieira, R. F. Júnior, M. Ma. C. Hub-ner, & R. D. Olmos (Eds.). Psiquiatria interdisciplinar (pp., 3-5). Barueri-SP: Manole.

Parikh, S. V., Quilty, L. C., Ravitz, P., Rosenbluth, M., Pavlova, B., Grigoriadis, S., … the CANMAT Depression Work Group. (2016). Canadian network for mood and anxiety treatments (CANMAT) 2016 clinical guidelines for the management of adults with major depressive disorder: Section 2. Psychological Treatments. Cana-dian Journal of Psychiatry, 61 (9), 524-539. http://doi.org/10.1177/0706743716659418 

Projeção da população do Brasil e das unidades da federação (n.d.). In: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística website. Retrieved November 22, 2019, from https://www.ibge.gov.br/apps/populacao/projecao/index.html 

Suicide prevention (n.d.). In: World Heath Organization website. Retrieved June 18, 2018, from http://www.who.int/mental_health/suicide-prevention/en/

Desenvolvido por Paulo Abreu